Mary chegou no velório do grande amor de sua vida praticamente ?dopada? para não se incomodar com o falatório e impacto que sabia, iria causar.
Estava muito frio e chovendo, vestiu uma capa preta por cima do vestido também preto (até sua alma estava ?negra?) e prendeu os longos cabelos num ?rabo de cavalo?, calçou um sapato alto e se atreveu a prestar a ultima homenagem a Carlos.
Fazia tempo que não o encontrava e as circunstancias da despedida a impediam de guardar uma boa recordação, mas ele havia sido o seu grande amor e ficaram ?enrolados? quase três décadas; era praticamente uma vida, quase toda a sua existência pois se conheceram crianças e se amaram como almas gêmeas desde então.
Mas entre eles o tempo, a mãe de Mary, o casamento forçado que lhe foi imposto (e que não deu certo), e quando conseguiu finalmente estar só, era Carlos que havia desistido de esperar e também se casara, e assim viveram por anos, separados oficialmente e juntos em uma vida que construíram às escondidas.
Foi assim que Carlos conseguiu estar presente em todos os melhores momentos de sua vida, lhe dando amor e conselhos, ajudando na tomada de decisões importantes e chegaram a montar um apartamento juntos.
Mary não teve filhos, e nem pôde conviver com a família de Carlos ou levá-lo para a sua família, mas chegou um tempo em que todos (absolutamente todos) sabiam do relacionamento e a mulher de Carlos (sua eterna algoz, porque é assim que foi estabelecido no destino do trio ?Mary, Carlos e Lucia?), passou a atormentar a sua vida tratando Carlos como se nada acontecesse.
Carlos por sua vez também ignorava a situação, acomodou-se com o relacionamento ?mal vivido? com ambas as mulheres e sob o pretexto dos filhos ?pequenos? e depois ?adolescentes? (sempre precisando dele), nunca decidiu-se por ir ou ficar...na verdade nunca foi e nem ficou (se me faço entender!).
Tudo prosseguia absolutamente igual quando Mary (que viveu tantos momentos maravilhosos com Carlos), percebendo que seu grande amor jamais tomaria uma decisão, decidiu ela própria, e quis ?mudar de vida?. Sentia-se quase uma delinquente a desistir da vida criminosa e teve vontade de ir para longe sem sequer avisar a própria família, sem dar satisfação a ninguém, foi quando refugiou-se (porque era assim que se sentia, uma refugiada) numa pequena cidade do interior do Paraná e procurou mudar de hábitos.
Médica (poderia trabalhar onde quisesse), então planejou tudo às escondidas e manteve secreto o seu endereço, precisava partir...e partiu, simples assim, sem olhar para traz.
No começo parecia que ia morrer, seu peito doía tanto que manter-se no isolamento e incomunicável foi a única coisa que lhe garantiu não retroceder. Dedicou-se aos seus pacientes, e aos finais de semana (quando não trabalhava) pegava o carro e saia sem rumo atrevendo-se a conhecer lugares inimagináveis de tão escondidos (e no Paraná existem muitos!) e beber bons vinhos.
Depois de algum tempo (incrivelmente, pois nem ela acreditava) o desespero foi passando, já conseguia dormir melhor, comer e também fazer passeios menos isolados, mas recordava os momentos maravilhosos vividos com seu grande amor e as loucuras que fez a ponto de se expor publicamente nos vários vexames e presepadas armadas por Silvia.
Recordava-se que a rival expunha o relacionamento extraconjugal do marido e a impedia de ter amigos, destruía todas as suas amizades maldizendo e difamando a vida da médica a ponto de até mesmo seus pacientes, mais cedo ou mais tarde, a abandonarem. E o pior era que Carlos não se decidia, na verdade fingia que não via e insistia que a mulher de nada sabia.
Quando Mary resolveu ir embora (e foi), não olhou mais para traz e sequer procurou saber do amante. Depois de um tempo passou a sentir uma paz incrível e ainda que o peito doesse se permitiu conhecer outra pessoa.
Pedro também era médico e especialista ?nas dores do coração? aos poucos foi lhe curando a alma a ponto de Mary não desejar mais voltar ?ao passado?, só pensava no presente e depois passou a pensar também no futuro, queria estar sempre com Pedro.
Porém um dia chegou pelo correio um cartão postal, era de Carlos e dizia ?estou fora do país faz 02 anos, tempo demais para viver sem você, tempo de menos para esquecê-la e agora que te encontrei comprei passagem de volta e nunca mais vou te deixar partir?.
Mary não sabia se chorava ou se sorria, será que Carlos havia se separado de Silvia? E como conseguiu encontrá-la se nem mesmo para a família disse onde estava!
Os dias passaram demoradamente naquela semana e ela não imaginava o que poderia acontecer, então decidiu não fazer nada, simplesmente esperou, contando tudo para Pedro depois de não saber mais o que fazer para esconder a preocupação que carregava.
Foi quando o destino a surpreendeu mais uma vez e Pedro lhe disse que a amava, mas que não a impediria de ir e nem iria atrás caso ela não voltasse, porque não queria conviver com a infelicidade dela e nem ser infeliz. O médico foi um grande homem, e a deixou livre para decidir, sem pressão e sem brigas, respeitando a sua decisão.
Mary não sabe como conseguiu, mas depois de tanto tempo o celular de Carlos (que sempre foi o mesmo) tocou e ela do outro lado da linha conseguiu falar com ele e finalizar a história. Sem ressentimentos lhe contou que estava bem e que hoje morava com Pedro, contou-lhe tudo o que passou, o que fez nesse tempo para sobreviver e ambos choraram muito até que ela lhe respondeu que seria a ultima conversa deles. Ouviu o pedido de perdão e o ex amante implorando para que ela o aceitasse de volta, ficou sabendo que ele não havia se separado oficialmente de Silvia, mas que se mudou do país sozinho após desistir de procurar pela amada.
Como o destino é sábio! Cada vez que ouço histórias de vida como essa me convenço ainda mais que ele apenas cumpre o que está designado para cada um. O tamanho do sofrimento é o exato tamanho necessário para que tudo se acalme no turbilhão da vida e o tempo, santo remédio, cura todas as feridas e coloca tudo no seu devido lugar, exatamente como tem que ser.
Mary e Pedro se casaram e ela conta que é muito feliz, que nunca deixou de amar Carlos e por isso mantém sua história no anonimato (para não expor seu marido), mas que a dor que antes tanto doía já não dói mais, apenas lhe faz suspirar quando se recorda de tudo e registra que do seu jeito, muito mais saudável e natural, ama Pedro, pessoal incrível que a fez entender que quando faz mal não pode ser amor.
Voltando ao enterro de Carlos, que reatou com Silvia depois de se despedir de Mary, percebeu o quanto sentia a morte do seu ?grande amor?, mas Pedro a convenceu a ir e a entrar no cemitério de cabeça erguida e na sua melhor versão, lhe dizendo: Vai e se despede dele, eu estarei aqui na porta do cemitério te esperando, vamos embora depois e virar esta página finalmente.
Mary não contou como foi o enterro e nem o motivo da morte de Carlos (seria talvez o fechamento desta história) e eu respeito muito a sua vontade e sou grata por compartilhar comigo a sua linda história de vida, sob o seu ângulo e por minhas palavras.
Talvez ela tenha finalmente (como disse Pedro) virado a página, talvez não; espírita que sou costumo explicar a vida pelas diversas outras vidas que já tivemos e que ainda teremos e pelos fatais reencontros preparados pelo destino. Que assim seja e que em algum lugar esse amor ainda tenha explicações.
Esta é mais uma ?Crônica da Vida?.
???